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09 janeiro 2014

APENAS BOAS HISTÓRIAS FAZEM PRAÇA


        
No horizonte as horas passavam subscritas na paisagem, o tempo não era mais que o instante e a poesia não se guardava na lembrança. Nada além dos corações abraçados pela história, fazendo de Fortaleza o "não lugar" e a morada daqueles que acreditam em si e não resistem por ela.            
O menino parou e repousou sua estaca nas escadas da calçada do Teatro José de Alencar. Aquele era o primeiro dia do ano e ainda não passava das primeiras auroras de uma outra manhã. Só os pássaros e os ratos cruzam a praça naquela hora, vivenda que acolhia os que ali dormiam embrulhados nas caixas que as lojas se desfaziam.           
A menina pensou em ir para a missa, mas preferiu rezar ao lado de Raquel de Queiroz nos leões do centro. Puxou um cordão de vidro e dividiu a praça com os bêbados que urinavam nas árvores, enquanto chamava  "Ave Maria". E ficou esperando os sinos da paróquia do coronel.           
Cada um, na plenitude da sua demasia. Encorajando-se para começar o ano que poderia ser qualquer dia. Nada os esperava pela frente, não havia um caminho certo, um lugar seguro... Apenas a cidade, a mesma que os gerou e mastigou pela vida.           
Às sete horas, o relógio da Praça do Ferreira tocou e foi o único ruído que podia ser ouvido dali pela burguesia, onde escondiam os filhos desprovidos da índia maravilha. Soou como uma sereia chamando os meninos mal vestidos para um embuste.           
- Venham lavar os pés no meu umbigo.            
Embalando-os nas batidas, e feito ímãs, foram todos esquecidos pelos fogos de artifício cruzando lentamente as alamedas poluídas. Os dois, o menino e a menina, sentaram-se lado a lado às margens do chafariz. Tiraram os chinelos e mergulharam na banheira da vitrine da cidade. Como dois pombos divertidos e meninos.            
Molharam as horas, respingaram os ponteiros, despertaram o tempo e esfregaram-se nos olhos majoritários da cidade. Então, perceberam ter uns aos outros e viram o volume que juntos faziam. E começaram a festejar e a chamar toda a capital. Fortaleza, assim, notou-os e foi dar bom dia.           
- O que ainda querem de mim? Já não bastam as esmolas que providencio?           
- Eu quero a ti, mãe. Quero que me reconheça como filho e me aceite no jardim da tua casa - pediu o garoto.           
- Quero estudar e acreditar em mim, já que não acreditas. Poder escrever minha agonia na tua história que insistes em esquecer, Fortaleza. – completou a menina.           
A cidade parou e respirou, abriu os leques dos pulmões e aspirou as baratas dos lixos de concreto.           
- Aqui não é lugar para meninos bandidos, não é verão para mendigos e maltrapilhos! – respondeu um segurança sacudindo-os pelas orelhas e espantando todos como fugidos. Depois, estendeu os tapetes quadriculados de veludo pelas galerias e tapou a sujeira das olarias.            

Foi assim que Fortaleza recebeu José e Maria para mais 300 dias, e ainda encapotou os únicos pares de chinelos que os dois tinham.

MIL SÓIS


           
Era quase como um desfrute proibido da vida. Eles se amavam de fato, cada um a seu modo, cada um com sua intensidade. Sentiam algo tão novo em seus corações que não arriscavam ir além, como se fosse perder o encanto. Ele a amava com o calor da amizade serena, ela se cativara por um amor eterno e adolescente. Sofriam em silêncio toda essa confusão, e se encontravam tão perdidos dentro dessa aflição denunciada, que também não a comentavam. Tudo soava muito secreto.           
Os olhares. Sim, nos olhares eles conseguiam fazer verdadeiros diálogos absurdos, e sabiam bem o que diziam. Às vezes, nas situações mais tensas, se apuravam disso e se confortavam desta maneira: "está tudo bem?", "me desculpe", "te amo", "estou aqui"... Sentiam assim, uma vaidade por se conhecerem nas simples intenções. E claro, nestes verbetes mudos, quase sempre se confundiam sobre quem amava quem ou quem era mais amigo.           
Aconteceu que uma vez se perceberam sentados por horas em um banco na praça da Igreja de Fátima lendo. E quem os acordou para isso, acreditem, foi o sol meio tímido querendo nascer. Quase que constrangido por denunciar seus rostos cansados. Pois quando ainda era noite, ele abriu o livro em uma página qualquer e começou a ler ‘Crônicas de uma Província em Chamas’. Ela, que amava teatro, se divertiu com a leitura dramática.            
O pretexto que precisavam para esperar o próximo ônibus, e outro. E não apenas quando a manhã chegou, eles que concluíram o porquê, foi bem antes, no instante que ela se distraiu nas palavras e ele cansou de ler. Perceberam que estavam ali apenas por estarem os dois.            
- Vem comigo hoje, dorme lá em casa...            
- Sabe que não posso, meu anjo, estou com Lô faz oito anos, não posso estragar tudo...           
- Não diria isso se me amasse. E como se fosse motivo para evitar o apego entre duas pessoas...           
- O que quer que eu faça? Que termine minha relação? Não conseguiria viver sem ela, entenda.           
- Você está vivo não está? Lindo como sempre, mesmo com esses olhos pescando a luz. E se não percebeu... Onde ela está? Estamos juntos quase todos os dias e não o vi passar mal em nenhum. Vocês se falam ao telefone pelo menos?           
- Também não é assim, Amandinha. Ela liga lá para casa! Não temos mais necessidade dessas ligações diárias, já nos conhecemos bastante. E quase todo final de semana ela vem me ver.            
- Sério? Hoje é sábado, quero dizer... era. Agora é domingo. Enfim, tudo bem. Não posso fazer nada! Você fecha a questão, apesar de estar a tão poucos quilômetros de sua amada e acabar amanhecendo aqui comigo em plena treze de maio. Poderia estar lá na praia com Heloisa, se quisesse, claro.             
- Você só pode estar brincando. A vida também não funciona assim. Além do mais você faz desse seu amor um capricho bobo. É uma moça linda e inteligente, não precisa ser refém disso.           
- Quero você, Ronaldo. Não consigo gostar de outro. Se conseguisse seguia em frente, ia mesmo...           
- Dei minha maior amizade, és minha melhor amiga, amo você.  Mas não quero ter que me afastar por fazer sofrer... Lembra do que lhe disse naquele dia? Não se lembra, não é?           
- Claro que lembro... Mas você falou muitas coisas...           
- Falei que era como o irmão que não tive.           
- Pelo amor de Deus, não quero ser sua irmã, quero ser sua mulher! Para amar pela vida toda. Vou estar ao seu lado sempre, construiremos nossos sonhos juntos.           
- A vida não é feita de sonhos, Amanda. Você é uma menina ainda.           
- Fala como se fosse a voz da experiência, só é dois anos mais velho, nem isso, ano e meio talvez. Chegaremos quase juntos aos trinta.           
- O que você quer com tudo isso? Honestamente, onde quer chegar com isso numa hora dessas?           
- Vamos dormir juntos hoje...           
- Mas isso é um absurdo, Amanda!           
- Não estou dizendo que vamos fazer algo, calma! Poderíamos só dormir abraçadinhos... Seria tão bom. Sinto sua falta quando vou dormir.           
- Não, não! Não, não! Se precisar de algo para se abraçar compre um urso, sua irmã tem um enorme que dá para quebrar seu galho. E o que é que vou dizer depois para Lola? “Fui dormir abraçadinho com a Amanda, mas não tem nada demais, ela é só minha amiga.” Que loucura isso que está propondo!           
- Sempre usando ela como desculpa para tudo. Fez disso um escudo! Ela não gosta de você, Ronaldo, não gosta! Se merecesse, juro que não diria isso. Quando estão juntos nunca se falam, não se abraçam, não se beijam... Ela parece que não sente nem saudade quando te vê. E eu sinto sempre!           
- Não sabe o que está falando! Heloisa é louca por mim, nos amamos muito. Além disso, ainda fazemos sexo loucamente, o tempo não passou para nós.           
- É uma piada? Como se o amor fosse feito de sexo, agora eu que pergunto se está falando sério?!           
- Vamos continuar com isso? São 7 horas da manhã, perdemos a noção do tempo.           
- Perdemos mesmo, vou pegar este ônibus. É o meu!           
- Ainda vamos nos ver, certo?           
- Disse que não queria me ver sofrer?           
- Disse também que não quero ficar longe de você.            
Ela ouviu, subiu e não olhou para trás. Não buscou seu olhar, Preferiu assim, na verdade sempre que falavam do que sentiam esquivavam o último olhar. E aquele não foi diferente. Porém, compreenderam que estavam no limite máximo entre ir e ficar, alguém precisava mudar. Na segunda, se encontraram como se nada tivesse acontecido. Na terça, quarta... Viram mil sóis banhar-lhes os lábios, mas agora se estranhavam nos abraços. Algo realmente mudou, mas não sabiam bem o quê... Não se olharam de verdade justo no alto do planalto, que lhes fechou o quadrado.

VITÓRIA CORTEZ


          
- Posso sentar?
- Fique à vontade.          
- É o senhor Vitório Maltez?          
- Sim. Me chame de Victor, apenas.          
- Tudo bem, Victor. Sou Vitória Cortez.          
- Posso chamá-la de Juliana?          
- Claro.          
- Juliana, estava agora a pouco lembrando daquela vez que fomos à praia. Ficamos horas tentando assar aquele peixe que pescamos. Parecíamos dois adolescentes perdidos na floresta e tentando sobreviver.          
- Amanhecemos deitados na areia, rindo e cantando para as estrelas. Faz quanto tempo mesmo?          
- Hoje está fazendo 100 anos, mas parece que foi ontem.          
- É verdade.          
- Fomos festejar nosso aniversário de namoro.          
- Aposto que foi nesse dia que ficamos noivos.          
- Sim, mas nunca casamos.
- Ainda podemos nos adequar, Felipe.
- Felipe? Vitório!
- Posso chamar Felipe?
-Tudo bem.
- Sua família sempre insistira que nossa união não era um resquício rebelde da natureza humana.
- Mas sabíamos que não era.
- Não?
- Talvez...
- Pensei que tivesse certeza. Sua mãe me ligou faz uns meses e me pediu desculpas. Eu perdoei.
- Minha mãe morreu faz três anos.
- Sua irmã, digo.
- Meu irmão, não?
- Isso. Seu irmão me ligou e se desculpou pela indiferença que sofri de sua família naqueles anos.
- Olívia, tudo isso ficou no passado, vamos reconstruir nossa história. Tínhamos planos de visitar a Europa. Ver as identidades que não foram apagadas pelo tempo ou pelo homem. Gostaria tanto de visitar a Acrópole de Atenas ou o Fórum Romano.
- Quero conhecer as cachoeiras de Bonito. Sonhava ter ali uma casinha de pau e renda para esperar a velhice com você. Ouvindo os pássaros das suas canções. Recitou para mim um verso naquele dia na praia: “Ainda bem que ainda existem pássaros livres e felizes no céu”. Lembra George?
- Sim, e me dissera: "Ainda bem que no chão existe você para percebê-los com sua vista felina e prendê-los numa melodia para nós."
- Aprendeu a tocar violão?
- Aprendi, mas não toco. Descobri que é o som a natureza que me inspira, desperta minha alegria pelo que não sou. Sentiu saudade de mim, Letícia?
- Tem gente que não sabe dizer quando sente saudade, retribuir um carinho, dedicar uma atenção ou cuidar do outro.
- Porque fala isso? Refere-se a mim? Não tenho medo de ser mal interpretado, se eu te disser que sentia saudade. Teria se fingisse sentir uma.
- Está tudo bem, amigo? Desculpe perguntar, mas estava passando e percebi que falava sozinho - perguntou uma mulher que cruzou o caminho.
- Não precisa se incomodar, estou bem.
- Posso sentar e fazer companhia? Estava apenas de passagem, mas já não lembro para onde eu ia.
- Obrigado, me chamo Vitório Maltez.
- Prazer, sou Vitória Cortez. Sobre o que falava quando o interrompi?
- Sobre boas saudades.
- Então deixe-me participar. Mas porque fala de felicidade sem sorrir?
- Mesmo quando alguém nos tira o sorriso do rosto, Mônica, é preciso seguir em frente e saber perdê-lo. E nem poderia sustentar uma expressão apenas por orgulho. Vou ser honesto com você e permitir o reflexo do esquecimento.
- Victor, é bom que as pessoas saibam do que são capazes com as próprias atitudes. Mas o riso sempre volta e a alegria também.
- Me chame de Felipe, por favor. A oportunidade de aprendizado entre as pessoas não floresce todo dia.
- E o que a tristeza ensina?
- A ser feliz, claro!
- Você já aprendeu isso com ela?
- Ainda não, nem os pássaros conseguem mais sorrir aqui.
- O que faz das aves joviais e tranquilas pode não fazer a ti.
- E o que a faz pensar que a alegria só é jovem e viril?
- Tudo que é novo nasce assim. Até o tempo passa para a felicidade e faz dela uma velha lembrança. As frutas maduras uma hora caem das árvores e os pássaros precisarão colocar os pés no chão para comê-las.
- Sabe Vitória...
- Mônica!
- Mônica, toda idade tem sua beleza. Foi você que não percebeu que estou sorrindo porque as rugas caíram maduras em minha face. Mas meus olhos não lhe dizem nada?
- Nossa! Não tinha percebido. Ficara cego de um olho?
- Não!
- Claro que sim, André. Há um buraco escuro e profundo no seu olho, parece o azul profundo do oceano. Precisa ir a um médico.
- Vou marcar uma consulta.
- Lembra quando éramos crianças? Escrevia-me cartas e mais cartas de amor. Ainda tenho todas guardadas.
- Também guardei o cartão de natal que deu quando éramos meninos. Dizia: “Boas Festas, Letícia” e só.
- Conhece esta árvore Victor?
- É o Baobá centenário.
- Consegue ler a frase que está escrita naquela placa?
- Não, estou mesmo com a vista turva.
- Aquelas poucas palavras contam toda a história desse lugar. Tomas Pompeu de Sousa plantou esse Baobá em 1910. Sabe quantos litros ela pode armazenar pelo corpo?
- Dois jovens deram-lhe a pouco uma garrafa de água. Pelo menos um copo ela tem.
- São mais de 120 mil litros de sangue que um dia correu dentro de nós. Nem tudo que sentimos é o que  dizemos. Nem tudo que somos vem exatamente só de nós. Desculpe, como se chama mesmo?
 - Eu não tenho nome, senhora. Apenas existi.
- Não sou senhora, desculpe novamente. Não tenho história, amigo. Mas atendo por Vitória Cortez.
- Vamos sentar aqui? – falou um garoto para uma amiga ao se aproximarem daquele banco verde no passeio público onde o velho casal repousava – Está vazio.
- Vamos sim – respondeu sorridente a garota. – Ouviu isso? São pássaros cantando?
- São os fantasmas que vagam perdidos.
- Fantasmas? – quis saber a menina.
- Dizem que essa praça é mal assombrada, não sabia?
- Então vamos embora, por favor. Deve ser por isso que ninguém vem mais para cá.

UM CAFÉ BEM AMARGO, POR FAVOR.


           
Teve tantos amores, foram tantas devoções e a todos amou igualmente. Cada um era sempre o maior dos sentimentos, o mais verdadeiro e profundo como nunca fora por outro. E acontece que sentia mesmo assim, desafiava a felicidade e se entregava plenamente às travessuras do destino. Arriscava viver romances mais rebuscados que os de Shakespeare e Rodrigues, sem querer diminuir a obra de nenhum artista, mas o fato é que ali era vida real e ela não se entregava a uma nova história que não fosse, no mínimo, avassaladora nas emoções, tanto que todos acabavam quando tudo ficava feliz demais, quando ela finalmente estava feliz para sempre.
A rotina a deixava cansada... Parecia que o amor apagava de repente do peito e pronto, arrumava a bolsa e deixava tudo para trás. Do passado, nada interessava. Mas acontece que, no seu íntimo, ia para uma nova vida, na esperança de finalmente não conseguir amar outro mais do o que o último, queria ser refém do amor para finalmente voltar e se entregar às mesmices dos dias eternos.           
Não estou aqui para julgar ou esmiuçar as aventuras de Teresina Cristina, eu a compreendo. Hoje sim, aprendi com o tempo... Esta era a grande ilusão que a movia em segredo, pelo menos foi o que dissera em seu leito de morte aos amantes beatos que desejavam morrer junto. Ela queria ter certeza de que o último fora o maior amor, e um outro não despertaria mais forte. Mas sempre conseguia ir mais além. Não tinha limites nas sensações e nunca voltara para nenhum homem. E também não voltou para nenhuma das mulheres às quais jurou amor. Sim, ela se permitia serenar a felicidade, seu coração era quem escolhia, não o seu corpo. Dizia que o amor não tinha gênero, só delírios e gozos verdadeiros de prazer. Morrerá jovem demais, por ser uma dama tão singular e virtuosa.           
Era um fim de tarde de outubro e Teresina tocou a campainha de minha casa.          
 - Cristina? O que faz aqui? – se assustou com meu espanto e não conseguiu falar - Gostaria de entrar ou está de passagem?           
- Mais ou menos... Sim, vou entrar.           
-Entre! Não repare na bagunça, estou esperando o fim de semana para arrumar estas tintas.           
- Tintas! Quando lhe conheci você não falava de arte, está pintando agora... Interessante.           
Acontece que eu não era mais aquele jovem perdido que caíra em seus braços, o tempo me fizera muito bem e melhor, por ela perceber isso. Estava melhor sem ela.           
- Estou mesmo, mas fiquei curioso com sua visita, já faz tanto tempo que cruzou essa porta e não voltou nem para dar bom dia... O que a traz aqui? Esqueceu o casaco por acaso?           
- Um colar azul de veludo, Miguel. Quero saber se você ainda o tem.          
 - Um colar de veludo...? Mesmo? Liguei tantas vezes para saber o que aconteceu, para que viesse pegar suas coisas... Deixei recados, falei até com seu irmão. Mas você não veio.           
- Eu sei, eu sei... Você o guardou?           
- Não! Doei tudo para a Santa Casa.           
- Nãaao! Era uma joia tão nobre... Dizia que quando eu usava essa peça ficava a mulher mais linda que viu. Devia ter guardado!           
- Cristina, não acredito que depois de sete anos veio questionar meu apego a suas coisas. Eu doei, claro! Esperei um tempo. Tempo até demais por sinal, então percebi que não ia voltar mesmo. Precisava seguir e me livrar da sua presença nesta casa.           
Cedo ou tarde todos os que conseguiram seguir a vida em paz precisaram fazer isso. Teresina foi para todos a maior vivência do amor. Poucos a esqueceram ou tiveram outra como ela. Uma vez, entrei em um bar e lá estavam três boêmios derrotados pela espera brindando ao nome de Teresina.            
Quando a conheci tinha acabado de chegar em Fortaleza, vim para uma temporada de trabalho e na primeira noite a conheci. E naquela mesma noite eu já a amava. Era uma mulher incrivelmente linda, e estava deslumbrante naquela noite usando o tal colar em questão. Tão madura e segura de si, não resisti. Mal tinha meus dezoito anos e acredito que aquilo deve ter alimentado seu ego maduro e viril.           
- Comecei a fazer terapia e minha terapeuta insistiu que eu precisava escolher o objeto mais significativo que deixei pelos meus amores. Voltar e pegá-lo. Ela me convenceu que precisava passar por isso. Como esse colar era da minha mãe, então...           
- Sinto muito, não sabia que foi da sua mãe. Ou teria devolvido quando fui à casa do seu irmão atrás de noticias. Talvez se ligar para a Santa Casa...             
- Não era tão importante assim, tudo bem. Minha mãe sempre foi tão ausente que não me lembro de vê-la usando. Era parte da terapia apenas. Não sei mesmo porque estou fazendo isso... Acho que é a crise dos 60. Bem... – rindo e indo em direção a porta.           
- Não Cristina, não vá agora, demore mais um pouco. Já estava indo preparar um café, e com damasco como você gosta. Tenho até um daqueles biscoitos indianos de coco que acompanhava suas xícaras durante bons filmes...          
Não vou ficar me justificando aqui, leitores. Nunca quis que fosse embora da minha história, gostava da sua presença.  Era tão agradável... No mais, tudo que fizera a mim, fizera aos outros, não fui menos especial por ela não ter levado na bolsa a chave de casa.            
- Terapia? – não conseguia parar, tinha medo que desse tempo dela dizer não. Menos de um minuto tinha aberto o café, colocado o bule no fogão, aberto a lata de damasco e já procurava aqueles malditos biscoitos que corriam o risco de estarem vencidos. Ela sentou novamente, pronto, aquilo fora um sim. Aliviei.           
- Conheci minha terapeuta em um cruzeiro que fiz para os Lençóis Maranhenses, pensei que teríamos um bom romance, mas ela me amarrou em um divã e tentou me convencer que eu não me conhecia. Já estou a dois meses com essas sessões...           
- E se conhecia? – deixei-a encabulada – Quero dizer, ainda apaixonada?           
- Não, seria impossível me apaixonar por alguém que tenta me desvendar todo dia, cada vez que nos encontramos, me enche de novas dúvidas. Seria feliz assim?         
  Claro que seria, mas não queria lhe cortar o riso outra vez. Reluzia quando sorria à vontade. Tê-la ali me encheu de lembranças. Pude vê-la nua, outra vez, com seus cabelos envoltos cruzando delicadamente as pernas, deitada sobre o sofá. Tenho perfeita essa imagem, está gravada em minha cabeça. Quantas vezes, desde que se foi, dormi aflito arriscando sonhar com essa minha repetida memória, com minha doce agonia chamada Teresina Cristina... Naquele dia tinha acabado de levantar quando abri a porta do quarto e ela estava naqueles trajes me esperando, com a mesa do café posta e esse mesmo sorriso jovem que me encantava agora. Segurava um bilhete e uma orquídea. Beijou-me e entregou o bilhete, eu li. Beijou-me novamente e, de forma terna e profunda, deixou três lágrimas riscar o rosto e engoliu seco antes de oferecer a rosa. Falou "bom dia, meu amor, fiz seu café".          
  Aquele dia do bilhete de nossa vida.           
- E você, como está?            
- Como? – minha respiração parecia sincronizar com as batidas do meu peito – Como? Perdi o fio, desculpe.           
- O que tem feito na vida? Quer que abra a janela? Está tão suado e vermelho, deixe que eu termino o café...           
- Não! O café não!           
- Como?           
- Digo... O café já está pronto. Eu mesmo fiz!           
- Está bem. Quero experimentar seu café com damasco. Faz tantos anos que não tomo um, que esqueci o gosto.           
- Nossa, tomava todos os dias, pensei que fosse seu favorito.           
- E foi, comecei a gostar no dia seguinte que lhe conheci. Fui ao supermercado e vi os damascos secos no balcão do caixa, alguém desistiu de levar e eu os levei! Imaginei na hora que ficariam uma delicia com o café. Passei a comprá-los sempre, por dois anos talvez, depois amargou...  Mas tinham um gosto muito provocante juntos! – sorriu com orgulho.           
- Nunca me disse isso, pensava que... Enfim. Ainda vai querer tomar?           
- Claro! Estou esperando pelo café. Deixa-me degustá-lo... Hum... Muito gostoso, ficou um profissional, Miguel!           
Fiquei ferido! Não sei como ainda continuava segurando minha xícara, tive vontade de estraçalhá-la na parede. Como estava esperando pelo café’?! Nunca mais tomou café com damasco... Aquilo foi a gota d’água! ‘Hum... Está profissional’. Só podia estar debochando da minha tragédia. Ia me enlouquecer de novo, senti isso. Se continuasse com ela mais um minuto na nossa casa iria pirar. Quero dizer... Minha casa, aquela era a m-i-n-h-a casa!             
“Não vá embora, preciso de você para viver”.Ah, Teresina. Ah, Teresina. Aquele seu pedido mudou nossa relação... Quando terminei de ler seu bilhete naquela manhã, me vi ingênuo e transferi meu trabalho para Fortaleza. Deixei família e amigos para salvá-la de uma dor. Duas semanas depois ela amanheceu e não voltou para dormir na nossa cama. E a cama eu joguei fora! Joguei fora! A cama eu realmente joguei no lixo!           
- Quebrei a cama e joguei fora!           
- Do que está falando, Miguel? - pude ver em seu rosto que estava fora de mim.           
- Cristina!           
- Oi?           
- Acho que você precisa ir embora.           
- Tudo bem! Melhor mesmo...           
- Sim, claro que é! – quanto mais a expressão dela modificava com minhas palavras, mas via um espelho gritando meu descontrole e loucura.           
- Sim, sim - foi tão depressa à porta que esqueceu a bolsa.           
- A bolsa! Leve sua bolsa. Não é a mesma que você guardava sua identidade naquele dia, mas foi a única coisa que não deixou. Então leve. Leve. Leve!           
- Nunca lhe vi assim. Está descontrolado!           
- Leve os damascos também! – apanhei rápido uma sacola de compras e comecei a colocar todas as conservas que havia na dispensa. Devo ter juntado uns 20 ou 30 potes de damasco. Botei em sua mão e a apressei a atravessar a passagem final. Ainda tive até o cuidado de esperá-la dar uns passos para trás e bati a porta em sua cara! Com toda a dor desses sete anos passados e coados por mim. Foi um eco tão estrondoso que fez ensurdecedor o silencio seguinte.            
- Não conhecia – falou baixinho do outro lado – E ainda não me conheço.           

Seus passos seguiram lentos e demorados pelo corredor do meu andar. Corri para o quarto e abri a gaveta da cômoda. Segurei a tal caixa de pandora. Finalmente estava pronto para me libertar daquela lembrança. Abri. Era mesmo um colar lindo! Corri para sala e abri a porta de casa. Ouvi seu passo parando. Respirei fundo, liguei novamente o bule do café e coloquei a joia dentro, queria que ela sentisse o forte cheiro amargo do meu café requentado suas com lembranças.

SUCESSO É OUTRA COISA


           
Ela sentiu que estava para estourar sua pressão arterial quando finalmente avistou um vendedor se aproximando do balcão, saiu do lugar e foi lhe falar ao pé do ouvido:           
- Olhe meu amigo, me falta um triz para perder a paciência, aí eu vou começar a gritar aqui dentro. Vou dar uma de louca! Tenho certeza que aparecerão todos os vendedores da loja, mas eu só preciso de um. Só de um! E faz meia hora que estou precisando somente de um vendedor!           
- Desculpe, estamos fechando a loja e nossa equipe está encerrando as atividades, mas providenciarei alguém para lhe atender – e rapidamente esquivou-se da reclamação e continuou com as atividades de balanço.           
O sangue subiu à cabeça e despencou até os pés, num milésimo de segundo, começou a suar frio. Precisava aliviar. Olhou para o cliente que chegou, fez fila, e disparou:           
- Isso é um abuso! Falta de respeito mesmo. Sabe a quanto tempo estou esperando que me atendam?           
- Eu ouvi... Disse ao vendedor que já faz meia hora.           
- E faz mesmo!           
- Hum rum...           
- E ainda não vi o gerente. Não deu o ar da graça desde que cheguei.           
- Certo...           
- E sabe o que mais me irrita?           
O homem não respondeu, parecia que não estava muito a fim de fazer parte daquela euforia e preferiu não inflamar.           
- Sabe o que mais me irrita?           
- O quê...?           
- Essa demora!           
- Eu sei, você já disse...           
- Disse mesmo e vou dizer mais, não volto aqui! Estou só esperando ter um infarto para que uma ambulância me leve para um lugar onde eu possa descansar um pouco. – e fez um eco bem alto na loja como se avisasse as paredes - Vou ter um infarto aqui dentro!           
- Hum rum...           
- Hum rum? É hum rum mesmo! Não queira saber tudo que já passei hoje. Ave Maria, não foi brincadeira. Olha ai, lá vem outro desses títeres sorridentes. Guarde meu lugar, por favor. Quero ir ali falar com ele.           
- Só estamos nós dois na fila, a loja está praticamente vazia. Pode ir...           
Ela foi até o vendedor e começou a gesticular com as mãos para todos os lados.           
- Amigo... Arrombaram meu carro hoje na frente do meu trabalho, que fica ao lado de uma delegacia – respirou fundo e falou – E olhe só o absurdo, ninguém viu isso acontecer. Imagine!? Agora, preciso comprar um chip para colocar em um celular velho que tenho lá em casa. Sou corretora e preciso de um telefone para trabalhar.
- Entendo, mas a essa hora o atendimento é apenas no balcão. Peço que aguarde lá enquanto anuncio no sistema de som, alguém disponível.
Quando ela se virou, a fila já havia seguido e aumentado. O homem que lhe guardava o lugar havia executado uma compra e seguido para o guichê seguinte, onde entregavam a compra embalada. Duas outras pessoas ocupavam o lugar agora.           
- Com licença, estava aqui no primeiro lugar a quase uma hora! Este lugar é meu – interrompendo a moça que recebia amparo para comprar.           
- Senhora, por favor, respeite a fila. Espere sua vez - pediu o caixa.           
- Mas era a minha vez! Melhor dizendo, minha vez passou quando atendeu aquele homem de camisa amarela. Aquela já era a minha vez!           
- Se continuar criando problemas, terei que chamar a segurança.           
- Pois chame! Chame mesmo! Que eu vou chamar a policia! – disparou-lhe a pressão e botou a mão no peito. Se lembrasse do nome policia mais uma vez ia mesmo ter um AVC ali dentro.            
- Vou ver se ainda temos no estoque, o sistema está lento e não consigo verificar se está disponível. Aguarde um minuto, por favor – falou para a moça amparada que estava acompanhada da outra pessoa da fila. Menos mal, pensou: pelo menos era a próxima.            
O caixa voltou confirmando o produto e recebeu o dinheiro. Concluiu:            
– Agora dirija-se ao outro setor para receber seu pedido. Chip Mais agradece a preferência e volte sempre. Próximo!           
- Até que enfim!            
- O que deseja?           
- Quero um chip.           
- Da promoção “fale até a Morte”?           
- Pode ser. Tanto faz... Contanto que complete e receba uma ligação, já basta!           
- CPF e RG, por favor.           
- Tome. Nem acredito... Pelo menos uma coisa vai dar certo hoje.           
Pareceu algo programado de tão pragmático, na mesma hora o telefone do guichê tocou e o rapaz atendeu. Era a conjugue dele que estava no outro lado da linha reclamando que não conseguia ligar para o celular do próprio marido.          
 - Só um instante, por favor. – e seguiu na conversa com a esposa - Sim, meu amor, jantarei em casa, mas pode deixar que eu esquento quando chegar [...] Não precisa... vá descansar, ainda terei que passar por dois terminais de ônibus para chegar aí. Depois das dez horas só um terço das linhas ficam circulando [...] Sim, eu sei meu amor... Mas tive que fazer hora extra hoje, entenda.           
- Vai demorar aí, amigo? Estou com presa – falou impaciente.           
- Só um instante. – terminou de dar boa noite para a esposa e desligou – CPF e RG, por favor.           
- Já entreguei!           
- É mesmo – e digitalizou os numero e disse – Lamento senhora... – olhou o nome na identidade – Senhora Madalena, o sistema encerra automaticamente às 22 horas.           
- Mas como?           
- Pela programação do sistema.           
- Eu sei como um sistema se encerra, não precisa explicar. Acontece que no relógio da loja ainda faltam quinze minutos.           
- Deve estar atrasado. Chip Mais agradece a preferência e deseja uma boa noite – abaixou a porta barulhenta da cabine que era caixa e atendimento ao mesmo tempo.            
- O quê? Não pode me deixar sem o chip! Amanha às 6 horas tenho que estar de pé para trabalhar e vou precisar dele! Cadê o gerente? – falou novamente com as paredes. - Alguém me chame o gerente!          
 Um outro vendedor apareceu e perguntou.           
- Qual o problema, senhora?           
- Estou em pane faz quase duas horas e ainda tiveram a cara de pau de agradecer a preferência. Sabe o que eu tenho para fazer amanhã? Trabalhar! Não tenho tempo para voltar e ficar arriscando enfartar em fila de espera, não! Onde está o gerente? Estou a horas procurando-o sem puder sair do lugar para não perder a vez.           
O homem pediu que aguardasse só mais uns instantes que ele voltaria para completar a ocorrência que ele acabou de iniciar em seu sistema funcional. Depois retornou com um segurança.             
- Vou pedir para que acompanhe esse cavalheiro até a saída.           
- Mas quem disse que vou sair daqui sem meu chip? Eu lhe disse isso, por acaso? Olhe ali, foi ele – e apontou para o cliente que saia da cabine que era para entrega e troca de mercadoria – Não pedi para que guardasse meu lugar?           
- Guardei, mas você não voltou...           
- Voltei sim, estava a menos de dois metros, podia ter me chamado.           
- O caixa disse que já ia embora, precisava garantir meu chip...           
- E comprou, né?  Me dê aqui, esse chip é meu!           
Começou a confusão que poderia acontecer com qualquer pessoa que frequentasse aquela loja. Todos estavam sujeitos à mesma qualidade e padrão. Agarrou na sacola do homem, ele segurou arduamente até rasgar o embrulho. O produto caiu no chão e começaram a ter que rastejar para ver quem levaria o tal chip. Em menos de um minuto toda a segurança do shopping estava posta para retirar Madalena de lá. Quando bastava um, somente um para atender aquela ocorrência de segurança.            
- Tirem essas mãos de mim!            
- O que está acontecendo, Senhora? – perguntou o gerente que apareceu como uma visagem.           
- Esta mulher pegou meu chip e não quer devolver – respondeu o homem de camisa amarela.
 - Esse chip era para ser meu. Tome aqui o dinheiro.           
- Mas está no meu nome, eu já paguei por ele.           
- Não tem problema, amanhã, ligo para a operadora e espero sentada até transferirem para o meu.           
- Por favor, devolva o chip ao nosso cliente e pedirei para que acompanhe nossos seguranças até a delegacia.            
Então, saiu correndo do shopping com a mercadoria furtada. Acontece que, no meio de todo o alvoroço, não percebeu que um garotinho pentelho estava filmando tudo, e da loja mesmo compartilhou na internet. Foi sucesso instantâneo. No outro dia pela manhã já havia virado "hit" nas rádios virtuais.            
Quando chegou ao trabalho havia uma carta de demissão em sua mesa junto com um DVD contendo a copia do vídeo. Ao lado, o jornal que anunciou e no letreiro principal, em letras garrafais: “Mulher causa tumulto na loja Chip Mais para não perder o último dia da promoção. Empresa comemora o sucesso.”.

E como finalmente ela ganhou um tempinho para passar mal e entrar em uma ambulância, teve ali mesmo seu AVC. Mais sabia que ainda enfrentaria mais burocracia e descaso, teria que esperar mais um pouquinho... Só que agora era a fila do centro público de saúde. E ninguém a notou, agonizando por um leito enquanto seus quinze minutos de fama passaram sorrateiros e ligeiros.

ELA DISSE AMÉM



- Alô? [...] Firmina. Firmina Ferreira. Estou ligando novamente [...] Sim, entreguei nas mãos Dele para que cuide de tudo!  Tem certeza que revelou? [...] Falou em justiça?! Justiça ou Justina? Repita por favor. [...] Falou que estou pronta!? [...] Sim eu sei, também me sinto assim. Eternamente grata!
 Desligou o telefone, bebeu o copo com água, e deixou a televisão ligada. Acordara assombrada no alvor da madrugada e não conseguiu mais dormir. Mas agora não estava mais aflita. Tomou banho, colocou um vestido de seda e rendas, depois o casaco. Viu em seu celular 70 chamadas silenciosas e não atendidas naquelas últimas horas. Percebeu que algo realmente fora revelado, ia retornar, mas não estava com pressa para saber. Apagou as luzes e deixou o televisor falando sozinho por garantia. Aquele seria o seu dia e já estava pronta para descer ao saguão do hotel e tomar o café da manhã como vinha fazendo nos últimos nove meses.            
Tomou um gole quente do leite, leu o jornal e engasgou-se com a torrada. O garçom lhe trouxe um copo de suco para aliviar a garganta. Disse que não, preferia um champanhe da safra de 1943 e esperou tossindo.     
- Beba senhora, beba rápido!
- Ai, que alivio. Nossa...! Esse espumante é mesmo bárbaro.           
- Está melhor senhora?            
- Claro que estou, na verdade nunca me senti tão bem. Hoje vou celebrar meu aniversário, sabia?           
- Aniversário?           
- Gostaria de encerrar minha conta, enviem as despesas para o meu advogado, por favor.           
- Claro! Desejo-lhe parabéns?            
- Não precisa, apenas avise na recepção para trazerem meu carro. E diga também que estou deixando como sugestão que adquiram algumas garrafas da safra de 1942. É sem dúvidas muito mais refinado.            
Pegou um guardanapo e anotou os dizeres que seguiriam nos convites para sua grande ocasião. “Firmina Justina Ferreira Dourado recebe amigos para Jantar Formal em sua residência às 17 horas.”           
Antes mesmo das oito horas estava em uma poltrona da gráfica mais aristocrata da cidade. Escolheu o envelope mais elegante do catálogo e pagou por 200 convites. Retirou uma lista de endereços da agenda e pediu que os entregassem no mais tardar, até as dez da manhã.           
- Lamento senhora, mas não aceitamos encomendas com menos de 24 horas de antecedência. Deseja cancelar?           
Retirou um volume suficiente de notas da carteira e concluiu que também não antes das nove.          
 - Com certeza! Cuidarei dos detalhes pessoalmente e começarei agora mesmo.     
- Faça isso, meu jovem.
Aquela seria uma grande noite e por dentro, estava se divertindo bastante com tudo isso. Fazia questão que lá estivessem todos aqueles que riram da sua desgraça nas rodinhas sociais, e tinha certeza que todos ansiariam para a ceia derradeira com a viúva titular da fortuna de Ferreira Dourado. Planejaria, mesmo em cima da hora, não queria que a data passasse despercebida e faria daquela a ocasião oportuna e ideal para anunciar seus planos quanto ao destino das empresas do marido.            
Havia quase nove meses que os dois estavam morando separados e a menos de dois convocaram a justiça para dar início ao que seriam longos anos de um litígio conturbado, mas não chegaram a assinar o desquite. Antonio vinha dificultando e faltando tanto com processo que era insuficiente para contestar a posse de Firmina sobre o patrimônio do falecido. Ainda tentavam marcar a primeira audiência de conciliação, e a única pessoa que poderia disputar a bolada herdada seria o filho do primeiro casamento de Ferreira, justo quem estava dirigindo o automóvel na madrugada que, pai e filho capotaram e faleceram na BR 116 estampando todos os jornais da cidade.           
Se Deus quis assim não iria mesmo questionar as razões.            
- Posso lhe acompanhar até o carro, senhora? – sugeriu o vendedor.           
- Por favor.         
  Sabia que não era de bom tom marcar reuniões nas segundas feiras, dia em que as butiques da alta classe fechavam as portas para balanço e os salões de beleza acompanhavam o mesmo recesso. Qualquer dama teria dificuldades para se apresentar adequada a um jantar de fino porte, salvo enterros e velórios, até porque não era bom tom esbanjar glamour ou destacar-se mais que a própria família desolada. Justamente por essas razões, não se importou em fazer sua grande noite na própria segunda, como lhes disse, estava de muito bom humor naquele dia.            
Além disso, queria confundi-los e causar desconforto. Estava "sambando" em cima da sua nova posição e não se sentia mal por nada. Até porque não fizera nada, acreditou fielmente que foi abençoada por Deus e só. Não desejou a morte deles, mas algumas vezes sim, quando vivia o pico da mágoa. Ultimamente estava com tantas dificuldades financeiras e sociais que só pensava em justiça. Resolver tudo com justiça e na justiça, mas pouco foi preciso.           
 Antonio sujara seu nome de forma vulgar, difamou-a na frente de todos os amigos da família e ainda a fez passar por ridícula. Não gostava nem de lembrar, nunca havia sido tão humilhada e reduzida. Sabia que ele escondia muitas aventuras e amantes antes de procurá-lo na cama, porém sempre fora fiel ao marido. E a Deus, os dois grandes valores que sua mãe lhe ensinou quando moça. Ela a aconselhava com as virtudes necessárias para ser uma esposa da sua classe e status.             
 - Sinto-me tão radiante quanto no dia do meu casamento.           
- E está muito bonita, senhora, se me permite dizer.            
- Irei finalmente comemorar meus 52 anos e torcer para que me venham pelo menos outros cinquenta. Quero viver a partir de agora, valorizar cada dia. Não acreditava quando me diziam que a vida podia acabar a qualquer instante – parou séria e abriu a porta do carro. Pareceu realmente se dar conta do que falou. Levou um choque – Como é mesmo seu nome rapaz?           
- Cristiano, senhora.           
- Muito bonitos esses seus óculos de sol. Posso experimentar?           
- Claro.           
- Mas como eu dizia... Pode mesmo, Cristiano. Acredite, a morte chega de surpresa. É um perigo!           
- Sim é verdade, eu sei Sra. Ferreira Dourado. Eu fiquei sabendo...            
- Irei andando mesmo – fechou a porta do sedan e sorriu maliciosa - minha residência é muito perto. Estava tomando café em um hotel, mas como irei para casa hoje... Não se importa se eu deixar o carro aqui?            
- Fique à vontade.           
- Posso ficar com os óculos? Apreciei-os bastante.           
- Sim, não estão a sua altura, mas aceite como meu presente.            
- De repente me deu medo de entrar nesse carro, acredita? Li no jornal a sinopse de um filme de terror que comecei a assistir ontem na televisão e ainda devo estar impressionada... Não consegui dormir até – e começou a rir de forma exagerada e desgovernada.           
-Imagino senhora, posso imaginar... – o rapaz ficou bastante constrangido com a situação. Não sabia se ria para agradar a cliente, se lamentava a tragédia que era a vida, ou se esperava que agradecesse os óculos. Preferiu garantir a gorjeta extra e fazer jus às normas da empresa, a primordial era clara: não contrariar os fregueses.            
Só uma coisa cabia ser dita naquela situação.           
- Com licença, senhora. Irei providenciar os convites.           
- Até logo, meu jovem. Até logo. – riu num misto de desespero e alegria.           
No fundo estava bastante impressionada com o poder de Deus e o do próprio ser humano. E até um pouco assustada com o tal filme mesmo... Uma coisa se uniu a outra e resultou numa crise nervosa. Não conseguia parar de rir e pelas ruas todos pareciam notar horrorizados. Era socialite célebre em Fortaleza, todos conheciam seu marido. Virara favorita das colunas sociais que constantemente publicaram notas comentado sua crise conjugal ou especulando uma reconciliação.           
Chegou, respirou fundo e abriu as portas da casa com gosto e de uma vez, as criadas se assustaram e cantarolou um afinado e agudo bom dia.           
- Cruz credo, dona Justina. A senhora me mata de susto assim.           
- Estava assistindo a sessão da noite ontem também, Gloria? Um horror aquele filme.           
- Que bom que chegou, não sabia o que fazer. Quer ver os recados?           
- Acabei de chegar, estou morta! Vim andado – esparramou-se no sofá e prendeu o cabelo – Ligue a central de ar e me traga um copo de suco, estou soluçando. Olha, os olhos cheios d’água. Nossa!          
   A governanta fez sinal para outra criada trazer a bebida e ligar o ar refrigerado. Foi apanhar o bloco de recados na outra sala, esperou que a patroa parasse o singulto e entregou-lhe.           
- Está aqui, senhora.           
- Muitos recados, Glória?            
- Bastantes, dona Justina.           
Folheou o caderno e esboçou ar de desinteresse. Foi direto ao assunto:           
- A cerimônia será aqui mesmo. Prepare minha melhor louça, a mesma que usei naquele aniversário. Quero mesas no jardim e o jantar prepare para 200 convidados. Ligue as fontes e acenda todas as luzes às 17 horas. Acenda todas mesmo, quero muitas luzes. A propósito, desligue o ar e abra todas as janelas.           
- E o que vamos servir?           
- O mesmo jantar do meu aniversário. Quero dar motivos para minhas amigas terem muito que conversar depois - disse sorrindo - E o mesmo vestido!           
- O mesmo vestido?           
- Sim! O vestido e os sapatos.           
- Mas senhora, penso que...           
- Não me questione, Glória! Obedeça apenas. Desligue o telefone, não quero que liguem confirmando a festa.           
- Farei.           
- Outra coisa: muitas flores. Flores vermelhas, finas e delicadas. Sabe como gosto delas: bem encarnadas!           
- Aproveito alguma dessas?           
- Claro que não, estas estão horríveis... Flores de defunto! Não quero coroas, parecem secas e ásperas, mude todas. Quero muitas! – se recompôs e levantou do sofá. Pegou a bolsa.           
- Chamo o motorista?          
 - Sim, mas não irei sair, vou para o meu quarto. Tenho muitas coisas para resolver, mas farei pelo celular. Peça apenas para apanhar meu carro na gráfica.           
Abraçou Glória e falou:           
- Hoje quero apenas poder celebrar meus 52 anos e nada mais. Sou uma mulher rica e estou viva. Glória. Viva! É fui abençoada também, sabia? – a empregada esforçou-se e sorriu sem graça – Vou para banheira relaxar um pouco. Não me incomode, apenas quando meu advogado chegar com o representante do cartório. Leve-os para a biblioteca e me chame.           
- Deseja algo mais?           
- O bolo, oh Glória! Ainda tenho que ligar para trazerem meu bolo para cá – e foi para o quarto cantarolando uma valsa fúnebre.           
Sentia-se vivendo um "déjà vu" ou estava idealizando vivê-lo. Um traço preciso que marcava a personalidade de Firmina Justino era o rancor. Dificilmente perdoava ou esquecia uma mágoa. E a noite do seu último aniversário a marcara profundamente.
Começou chegando atrasada à própria festa e isso desencadeou uma séria de outros acontecimentos.           
Primeiro, o marido já estava bêbado e começou a enchê-la de perguntas sobre onde esteve. Partiu como uma grande brincadeira, mas a conversa foi ficando séria e rapidamente desencadeou uma discussão. Dissera que o salão estava muito cheio e demorara a aprontar-se. Então, o filho de Antonio Ferreira, que nunca lhe elogiara uma unha, estranhou e questionou seu cabelo e maquiagem. O marido quis o nome do salão, dissera um... Uma amiga comentou que estivera lá e não a vira. Ele se aborreceu e foi para o quarto colocar o mesmo vestido que usaria naquela noite.          
 Quando desceu as escadas estava tão linda e deslumbrante que inflamou uma crise de ciúmes. Ele a acusara de traição na frente de todos e chamou o motorista, perguntou em alto tom aonde levara sua mulher.           
- Ao Conjunto Dois Irmãos, doutor.          
- Conjunto Dois Irmãos? Está me traindo com um pobretão, cretina?          
- Não acredito que está fazendo isso, Ferreira.           
- Responda!           
- Sou mulher de princípios. Respeite-me!           
- Então porque estava mentindo? O que fazia lá?           
- Conversamos depois, não é momento para isso. Estamos recebendo convidados!           
Ele a puxou pelo braço com força e lhe rebocou o corpo com firmeza.           
- Responda! Responda agora!
Falou em tom tão agressivo e intimidador que o motorista estremeceu pela patroa e tomou a palavra.           
- Na Igreja Jesus Aleluia Irmão, doutor.           
- Como?! Está virando crente, Justina? Era isso que estava escondendo?           
E começou a rir. Foi uma comoção geral, todos riram juntos. Ficara bastante embaraçada e não conseguira responder. Saira de casa aos prantos e fora para um hotel e não voltara. Fora o inicio da separação.           
Firmina era católica praticante de uma vida inteira e criada por família de fortes princípios ortodoxos, diversas vezes criticara outras religiões em suas conversas paralelas. Piadas preconceituosas, adjetivos desnecessários... Por isso ficara tão envergonhada de dizer na frente de todos onde estivera.             
Na noite anterior ao tal aniversário sentiu-se tocada pelas mensagens da doutrina na programação da televisão e quis ver de perto. Escolhera uma igreja distante para que ninguém a visse por lá, e quando lá chegou, orou com fervor. Aquela foi a primeira e a última vez. Pensou em voltar, mas não teve coragem depois da humilhação.           
- Senhora? Seu advogado já está na biblioteca com o representante do cartório. Vai descer agora?           
- Sim, estou indo.           
Colocou um roupão e atravessou a casa, ansiosa.           
- Bom dia, senhores. Não, não precisam se levantar, fiquem sentados mesmo, serei breve por hoje, mas quero deixar tudo encaminhado com o cartório. Depois o senhor, Dr. Rubens, cuidará dos pormenores para mim.            
- Bom dia, Sra. Ferreira. Cuidarei do que for preciso. Vejo que está muito bem e disposta hoje. Recebi o recado de minha secretária e lhe trouxe o representante do cartório, mas liguei a madrugada inteira para lhe dar a noticia...           
- Estava com Deus na outra linha! Agora, estou pronta para dar os rumos dos negócios!          
 - Não acha muito cedo? Já sabe o que pretende fazer?           
- Absolutamente, desfazer-me de tudo!           
- Está certa disso?           
- Sim. E já quero deixar tudo assinado.           
Foram horas de conversas e acertos, assinou documentos, procurações, negociou títulos, imóveis... Iria conservar apenas aquela casa, seu automóvel e algumas poucas ações. Não teria arrependimentos. Nunca aspirou a uma mínima vocação para o mundo empresarial. Terminaram e se dirigiram a saída.           
- Bonita a decoração – comentou o advogado – será uma noite bem glamourosa pelo visto.           
- Obrigada. Sou mulher de bom gosto e muito abençoada por Deus. Sempre fui, e quero celebrar minhas bênçãos sem culpas. As viúvas costumam entrar em quarentena pelos seus maridos, eu sei, mas não entrei. Talvez um dia faça isso, mas só se for por outro. – rindo - Antonio não. Não merecera o presente que fui em sua vida. Virá mais tarde?           
- Claro, venho prestar homenagens.           
- Senhora! Chegou! – interrompeu a criada.           
- Senhores, preciso receber o meu bendito bolo. Glória acompanhe os cavalheiros até a porta enquanto recebo a encomenda. Depois leve o meu vestido para o quarto e me aguarde lá.           
Encaminhou-se ate às portas do fundo e assinou a guia de recebimento.           
- Coloque-os próximo à mesa de frios.           
Passou pela cozinha, conferiu o cardápio, as bebidas e as roupas dos empregados. Subiu para o quarto onde a governanta a aguardava.           
- Agora irei me arrumar, Glória. Os convidados breve começarão a chegar, receba-os com sorriso no rosto, sim? Quero muita alegria e animação. O jantar deve ser servido às 18h em ponto para que tenham uma indigestão quando me virem. Verifique as luzes.           
- A senhora não me passou a lista de convidados.           
- Não, não precisa. Deixe as porta aberta para quem desejar entrar.          
 Quase todos os amigos que ali estariam eram empregados ou tinham negócios ligados às empresas Ferreira Dourado. O advogado aconselhou que fosse delicada quando falasse sobre o assunto. Estava despreocupada quanto a isso e esperava, francamente, compartilhar tudo com aqueles bajuladores de cargos e promoções.           
Às 18 horas e 30min apareceu deslumbrante no alto da escada usando o vestido vermelho que comprara em Londres exclusivamente para seu aniversário de 52 anos. Mas para aquela ocasião acrescentou um colar de diamantes com ouro branco e um anel solitário de uma esmeralda turco-grega lapidada por escravos feudais. Tinha consciência que ficara absolutamente muito mais encantadora do que no desastroso natalício. E claro, estava com o ego bem mais aguçado.           
Todos paralisaram as expressões e focaram-na a atenção. Soltou os cabelos e completou o visual com os óculos escuros do vendedor da gráfica.           
- Boa noite a todos! Agradeço a presença, apesar das despeitas, me sinto renovada e estou passando agora uma borracha em suas consciências.            
Começou a descer as escadas com a leveza de quem levita, reproduzindo-se em uma película preto e branco. Destacava-se apenas ela e suas rosas vermelhas espalhadas pelos salões.            
 - Mas como esta é a minha uma grande noite, deixarei o passado para trás e vou falar do futuro e de negócios. Fiz uma generosa retribuição a um presente que recebi de Deus. Quis agradecer minha graça, pois nessa madrugada fui abençoada durante um culto televisivo e quando para lá liguei, Ele, Deus, revelou-me que estava pronta para aceitá-lo em minha vida. Desci para o café e deparei-me com a sinopse de um trágico filme no jornal, e os convidei para que acompanhassem de perto o triste fim de Antônio. – levou a mão à boca e sorriu viúva, o verde do anel espelhou em seus olhos - Fiz novos planos para minha vida e já estou pronta para começá-los. Doei todas as empresas e ações que herdei para aquela igrejinha suburbana que ouviram falar em meu aniversário de 52 anos. A Igreja Jesus Aleluia Irmão. Ela administrará a partir de agora seus empregos.           
A plateia murmurou eufóricas reações e ela parou, olhou-os demoradamente passeando a vista por todos que lá estavam. Retomou a cena.           
- Glória, me traga aquela garrafa de champanhe 1942 que Antonio ganhou e guardou para uma conjuntura especial. Era para aquele dia, mas agora poderei finalmente comemorar meus 52 anos – recebeu a taça e a garrafa. Entregou para um diretor executivo da confiança de Ferreira Dourado – Faça o favor.            
Ele abriu e o estouro soou e refletiu não apenas nos olhos de Justina. Estendeu a taça para que ele a servisse.           
- Estou pronta para ser líder religiosa desta cidade e vocês agora compõem o coro para minhas cortinas. E como primeiro manifesto de minha autoria irei celebrar os cantos religiosos e fúnebres da noite. Amém? – Estendeu a taça convocando o brinde.           
E o coro morto e desenganado não completou.           
- Eu disse amém!            
- Amém...- responderam.           
Bebeu seu espumante 1942 e sorriu como uma lady para seus súditos. Engasgou-se e começou a tossir. Todos ficaram assistindo sem completar uma ação. Começou a faltar-lhe o ar e fez sinal para que batessem em suas costas. Eles engoliram o ar da sala e conspiraram com o olhar. Ela caiu morta ao chão. E a noite seguiu e o velório também, mas agora eles tinham os três corpos ao lado da mesa de frios.